Um caso de interferência desnecessária da luta pela igualdade de gêneros na língua portuguesa

Acho interessante, justa e necessária a luta pela igualdade de gêneros, mas acho perda de tempo querer modificar uma estrutura linguística milenar em favor disso.

Estão usando por aí um “x” no lugar do “o” generalizante porque esse “o” é idêntico ao “o” que finaliza a maioria das palavras do gênero masculino em português. Pessoal, é apenas idêntico, mas a ideia de “todos”, p. ex., é geral, não exclusivamente para o masculino. Para que se incomodar com isso?

Essa terminação “o” nem sempre corresponde a uma palavra masculina desde sua origem. Em latim, língua da qual se originou o português, os nomes se flexionavam em três gêneros: o masculino (como humanus), em feminino (como humana) e em neutro (como humanum). Quando se queria fazer referência a algo no sentido geral, usava-se o neutro: Errare humanum est (“Errar é humano”).

Acontece que, quando o nome ficava na função de objeto direto, os três gêneros passavam a terminar em “m” e, então, o masculino e o neutro se tornavam idênticos. Esse foi um dos motivos para o desaparecimento do neutro na formação da língua portuguesa e para o uso do masculino como generalizante.

Hoje, em português, dizemos “Cerveja é bom no calor”, com o adjetivo na forma masculina, mas com sentido neutro, mesmo que o substantivo “cerveja” seja feminino, porque ele está no sentido geral (qualquer cerveja). Se especificamos a cerveja, aí sim ocorre a concordância no feminino: “Esta cerveja é boa no calor.” Outro exemplo: “Acho bonito mulher de vermelho” tem sentido geral (qualquer mulher), enquanto “Acho bonita aquela mulher de vermelho” tem sentido específico.

Ou seja: a forma masculina tem dupla função em português: generalizar ou especificar. Pode se referir a homens e mulheres como um só (p. ex.: “Reunião de pais” – com a presença de homens e mulheres que têm crianças) ou apenas ao masculino mesmo (p. ex.: “Reunião de pais com o médico andrologista durante o mês de novembro”), enquanto o feminino é sempre excludente em relação ao sexo masculino (p. ex.: “Reunião de mães”).

Não adianta usar um “x” quando se referir a pessoas para eliminar o “o” final e, assim, evitar que se pense tratar apenas de homens ou, como pretendem alguns, acabar com a “predominância” do gênero masculino, se a forma masculina será usada em outros casos, por exemplo, quando o sujeito é:

– um verbo: Viajar é bom.

– um pronome indefinido: Alguém está ferido?

– um pronome interrogativo: Quem está ferido?

– uma oração: Ela chegou atrasada, o que foi péssimo para a imagem da empresa.

– uma expressão de medida: Cinco léguas é muito.

E se a referência for a animais, p. ex. “Ele cria cães e não gosta de gatos”, a forma masculina incomoda também? Se não, faz sentido aplicar esse x só na referência a pessoas se isso não vai acabar com o uso do masculino generalizante no nosso idioma?

Se, na escrita, esse “x” funciona, não funciona na fala, e a maior parte do que comunicamos se dá pela fala. Uma língua é, antes de tudo, falada.

Como pronunciar “todxs”, “meninxs” e “amigxs”?

Como usar esse “x” em adjetivos biformes como “bom/boa”, “mau/má” e “ateu/ateia” e pronomes como “meu/minha”, “teu/tua”… para criar essa desejável 3ª forma generalizante (ou neutra quanto ao gênero)?

Como usar os artigos “o/a” e “um/uma” com esse “x”?

Como dizer uma frase como “O pior cego é aquele que não quer ver”? com esse “x”? Ou deveríamos abandonar de vez esses provérbios só porque eles trazem as formas no gênero gramatical masculino, mesmo que a ideia seja “neutra” quanto ao gênero social?

Será que todas as pessoas se sentem incluídas numa forma como “todxs”, ou será que acham que ela se refere a um grupo específico quanto à sexualidade? (Já me perguntaram se esse “x” era para se referir aos gays!).

De que adianta escrever “x” ocultando o “o” final se, ao falar, não vai conseguir escapar desse “o”?

Pior: de que adianta escrever “x” ocultando o “o” se, ao se comportar, trata homens e mulheres de forma diferente, geralmente preferindo um dos gêneros?

Que tal deixarmos a língua portuguesa seguir seu fluxo natural na boca do povo e tentarmos mudar o que realmente está errado na nossa sociedade? É o povo, afinal, que define o que fica e o que sai da estrutura linguística, sendo essa uma decisão feita na coletividade através dos séculos, e não por um grupo reduzido de uma hora para outra.

Obrigado!

(E nem precisa complementar com “a todos”, porque é óbvio que eu não agradeceria a apenas algunsalgumas... algunxs… Ué, mas “alguns” e “algunxs” se pronunciam do mesmo jeito, não?, voltando à mesma confusão entre o masculino e o neutro latinos!)

Jards Nobre é professor, escritor, membro da Academia Quixadaense de Letras e escreve para o Diário de Quixadá.


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