Somos todos escravos

 

Parede do Açude Cedro, em Quixadá. (FOTO: mapio.net)

Quem costuma publicar ou comentar opiniões na internet, já deve ter percebido que vivemos numa época em que não podemos mais empregar os termos usados há séculos para nada, pois tudo é questionado, rebatido, censurado, desconstruído, reformulado… São tempos em que a comunicação é bem difícil, e comentar algo publicamente é pisar em ovos.

Vi uma publicação num grupo em que alguém, impressionado com a visita que fez ao açude Cedro, expôs imagens da represa, afirmando em todas as legendas que a obra fora feita por escravos. Resolvi então corrigir o equívoco, já que o grupo tem milhares de membros espalhados pelos Ceará inteiro, sendo uma boa oportunidade para dar a informação correta e desfazer o mito.

Bastou eu dizer que escravo nenhum trabalhou ali para surgirem comentários de gente que nunca vi, após muitos kkkkkk, questionando ou desconstruindo o significado de “escravo”. Ou seja, polemizando algo que não estava sujeito a polêmicas.

Então resolvi escrever novamente algo para esclarecer o que, para mim, é óbvio!

Quando alguém afirma que o Cedro foi construído por escravos, não está pensando em operários sujeitando-se a jornada longa de trabalho pesado em troca de comida ou salário abaixo do mínimo. Está pensando em NEGROS, de procedência africana, seminus, com argolas no pescoço, braços e tornozelos para colocar correntes, trabalhando em jornadas exaustivas sob a vigilância de um capitão-do-mato, registrados num livro de posses como propriedade de outrem e sujeitos a castigos desumanos.

Aí muitos vêm questionar o significado de “escravo” e dizer que, até hoje, há escravos. Ok! Alargando-se o sentido do termo, até hoje há escravos. Somos todos escravos, uma vez que somos obrigados a trabalhar para sobreviver e não temos outra escolha para ganhar a vida. Somos escravos do consumismo, do capitalismo, do neoimperialismo, do modismo, do imediatismo, do machismo… e até do cinismo e do pedantismo!

Se todos somos escravos sob algum ponto de vista, não só o Cedro foi construído por escravos, mas também Brasília, o Castanhão, o Castelão, o Mineirão, o Canal do Trabalhador (ou seria agora Canal do Escravo?), a Nova Jaguaribara, o viaduto da Engenheiro Santana Jr…. Pior: se somos todos escravos, o termo “escravo” se esvaziou, e temos de arranjar outro para designar “o indivíduo que vive privado da liberdade, em absoluta sujeição a um senhor ao qual pertence COMO PROPRIEDADE”, que era em quem estava pensando o rapaz que publicou as fotos do Cedro seco.

No caso do Cedro, percebo que as pessoas consideram mais “romântica”, mais “linda”, mais “interessante” a história falsa do açude, segundo a qual a magnífica represa foi construída por centenas de negros com o tórax exposto ao sol, esvaindo-se em suor, levando chicotadas de vez em quando, sendo castigados em troncos, tornos e outros instrumentos de tortura, dormindo em senzalas imundas e sem a menor condição de sequer reclamar da vida. Percebo também que as pessoas ficam decepcionadas quando lhes digo que foram homens brancos, mulatos e também negros que deram seu suor para erigir a bela barragem de pedra, porém não eram propriedades de ninguém. Porque me parece que as pessoas gostam mesmo é de desgraça, e por isso elas têm de caracterizar os trabalhadores do Cedro como escravos de alguma forma e se recusam a imaginar que aqueles homens poderiam até estar brincando e rindo enquanto trabalhavam. Ou será que o fato de os construtores do açude serem flagelados das secas diminui o fascínio diante dele?

Quanto a essa tendência a questionar e a polemizar tudo o que se lê, tenhamos cuidado e saibamos aplicar nosso filtro de conveniência, senão nos tornaremos escravos de algo que a internet potencializou: a competitividade.

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