Pão quente

Só os melhores soldados estão aptos a participar de uma guerra cujas batalhas acontecem diariamente, talvez até mais de uma vez por dia, dependendo de com quantos guerreiros você divide o apartamento.

Poderia ser a abertura de um livro de autoajuda, mas eu estou falando de um ritual antigo, necessário e quase sempre inevitável: a hora de ir comprar pão. Um dos alimentos mais básicos de nossa rotina alimentícia, ele é democrático (você pode comer acompanhado de quase qualquer coisa), barato (o que é bastante importante) e saboroso, especialmente quando está quentinho, saindo do forno.

Esse último aspecto, é preciso ressaltar, é o causador de guerras frias e silenciosas que são constantemente travadas em padarias e supermercados por todo lugar, inclusive naquele que fica bem perto da sua casa. Sim, naquele supermercado de gente boazinha, onde todos os caixas são simpáticos e você sempre encontra aquela vizinha idosa e simpática que pergunta pelo seu namorado, seu cachorro, seu gato ou até pelos três. Ali também. Não é porque você não vê as manchas de sangue que não houve guerra. A questão é que ela é silenciosa, nela vencem os mais preparados, perspicazes, astutos… E não os mais fortes, talvez apenas de vez em quando.

É só visualizar um pai de família saindo de casa às 6 da manhã, usando bermuda cáqui e blusa de gola clara, as chaves balançando na mão e o cabelo penteado de lado, mãos dadas com o filho, uma cópia mais fofinha do patriarca, uma carinha de anjinho inegável. Uma perfeita imagem de pai e filho indo comprar pão para o café da manhã.

Mas não se deixe enganar pela cena aparentemente inofensiva. Naquele momento, os dois não são simplesmente pais e filhos, mas dois guerreiros prontos para o combate. A roupa, cuidadosamente escolhida, induz os oponentes a caírem no erro de subestimá-lo, enquanto o garoto é um aliado. Pura estratégia.

No campo de batalha, o mercado, ele percebe que outros homens (sozinhos, tolos) já estão posicionados frente a uma mesa com uma cesta vazia. Nenhum deles se mexe, nenhum deles fala, apenas encara o mesmo ponto, com a tensão pairando no ar. Alguns, velhos de guerra que chegaram primeiro, já estão com as espátulas na mal, posicionados, aguardando o momento certo. O pai sabe que aquilo só pode significar uma coisa: uma nova fornada de pães está prestes a sair. Pães quentes, mais gostosos impossível, o tipo de pão pelo qual qualquer soldado honrado daria a vida, ou pelo menos a vaga no estacionamento.

Ele já consegue visualizar as glórias que o esperam se ele voltar para casa com uma sacola de pães recém-saídos do forno. O sorriso no rosto da esposa, seu menino o vendo como um herói, se inspirando nele, a manteiga derretendo ao entrar em contato com a superfície ainda aquecida da massa…

Mas o pai sabe que aquela não é a hora de pensar na glória iminente, ele precisa se concentrar. A regra é clara (ainda que ninguém nunca a tenha realmente verbalizado): diante de uma nova fornada, não existem filas, sobrevive – pega os pães – aquele que conseguir primeiro. Nosso guerreiro encara sutilmente os outros pais e maridos ao redor da mesa, silenciosamente avaliando a energia, a determinação e a força de cada um, determinando contra o qual o embate seria mais difícil, montando sua própria estratégia como, ele tem certeza, os outros estão fazendo naquele momento.

Um jovem vestido de branco surge na porta por onde apenas os funcionários podem passar, mas todos estão de olho apenas no que ele carrega acima da cabeça: uma cesta de pães, tão quentes que é possível ver a fumaça, tão lindos que poderiam ser uma miragem, tão cheirosos que o torpor instantâneo é inevitável. O funcionário deposita a cesta na mesa e sai tão rápido quanto chegou. Em mais uma daquelas regras que nunca foram ditas, mas todos conhecem, está dada a largada.

Espátulas, mãos e pães surgem desordenadamente no ar e é impossível distinguir o que pertence a quem. Pedaços de sacolas, blusas e fios de cabelo são atirados ao chão. Socos e chutes são distribuídos tanto em outras pessoas quanto na própria mesa. O homem liberta o que de mais primitivo há em seu ser para satisfazer o desejo do ID e batalha se desenrola frente a olhares curiosos e até mesmo assustados de pessoas que costumavam ser o representante da própria família naquele campo (mas foram substituídos por versões mais jovens) ou meninos, crianças que sabem apenas de uma coisa: em breve, serão eles. Ou algo próximo disso.

Alguns minutos mais tarde, um pai suado e bem desgrenhado, mas com um enorme sorriso no rosto, entra em casa, uma sacola de pães debaixo do braço. Ciente da própria conquista, ele caminha ereto, em um porte que ele reserva para os dias de vitória. Seu filho olha para ele como se visse um herói dos quadrinhos, o Batman, ou talvez o Homem de Ferro. Na porta da cozinha, sua esposa – ainda de robe – visualiza o que ele carrega e abre um significativo sorriso. Ela sabe que tem um soldado em casa, mais tarde, ele será condecorado.

Maggie Paiva estuda Comunicação Social na Universidade Federal do Ceará e escreve para o Diário de Quixadá. 

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