Marretadas na cabeça com varas de metal ou madeira. Mortes com cortes de machado. Vacas prenhes abatidas. Esses são apenas alguns dos cenários flagrados por integrantes infiltrados da Mercy For Animals (MFA), organização internacional sem fins lucrativos de defesa animal, em cinco abatedouros públicos no Nordeste, onde também foram constatados ambientes insalubres potencialmente danosos à saúde humana. Os estabelecimentos são responsáveis por abastecer o mercado local e oferecer carne para a merenda escolar. As denúncias, incluindo vídeos captados com câmeras escondidas, foram protocoladas junto ao Ministério Público Federal (MPF) em 28 de fevereiro e obtidas pelo GLOBO.
O trabalho de campo da organização se deu entre março e abril do ano passado nos municípios de Caicó e Jardim do Seridó, no Rio Grande do Norte, e Quixeramobim, Pentecoste e Pacoti, no Ceará. As práticas denunciadas pela MFA violam instruções normativas do Ministério da Agricultura, que desde 2000 impõe o chamado Abate Humanitário, vedando o uso de instrumentos agressivos e estabelecendo o emprego de técnicas de insensibilização “a fim de evitar dor e sofrimento desnecessários” aos animais desde a recepção nos abatedouros até a operação de sangria. Também não é permitido que as espécies sejam espancadas, agredidas ou erguidas por patas, chifres, pelos, orelhas e cauda, entre outras regras.
— George Sturaro, gerente de Investigações da MFA no Brasil
Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) publicado em março de 2023 indicou que existem no país 1.100 abatedouros bovinos, 646 suínos e 280 de frangos, todos inscritos sob inspeção federal, estadual ou municipal. Já um levantamento do Ministério da Agricultura citado pela MFA aponta que há cerca de 300 abatedouros municipais como os visitados pela organização. “Grande parte fica no Nordeste, no Sudeste e no Sul, mas essas duas últimas regiões têm um agronegócio mais moderno, além de receberem mais fiscalização estadual ou federal” explica Sturaro.
Higiene precária
Em um dos abatedouros alvo da ação da MFA, sob condições de higiene precárias, os instrumentos utilizados para cortar animais eram limpos em um balde com água suja e reutilizados, sem passar por esterilização. Em outro, os corpos dos animais eram manipulados diretamente no chão imundo. Também foram constatadas vísceras em decomposição no local de abate.
Além disso, segundo a MFA, nenhum dos locais vistoriados possui um inspetor de abate ou médicos veterinários, como previsto em lei. Os funcionários não utilizam Equipamento de Proteção Individual (EPI) e muitos chegam a aparecer de chinelo ou sem camisa nas gravações. Ex-presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Ceará, José Maria dos Santos Filho explica que o consumo de carnes abatidas em locais que não seguem as normas de vigilância sanitária podem ocasionar até 200 doenças através da ingestão de toxinas, bactérias, vírus, protozoários e helmintos.
“Os matadouros, sejam de bovinos, suínos, caprinos, ovinos ou aves, e as empresas de laticínios, mel e pescados, ou qualquer outra que trabalhe com produtos de origem animal, devem possuir sistema de inspeção sanitária, de modo a garantir a inocuidade do alimento” frisa o profissional.
Além da legislação federal, no Ceará há ainda a Lei 12.505, de 9 de novembro de 1995, que obriga que todos os matadouros do estado utilizem o método cientifico, com uso da pistola pneumática no abate de animais, e proíbe a utilização de marreta, foice, machado e utensílios similares. Já no Rio Grande do Norte, a Lei 6.459, de julho de 1993, institui que todos os estabelecimentos adotem técnicas modernas de insensibilização e opõe-se ao abate cruel de animais destinados ao consumo.
Os endereços nos quais foram flagradas as ilegalidades, administrados pelas próprias prefeituras, são destinados aos abates de bovinos, suínos e caprinos. Um dos locais chegou a matar 41 animais em um único dia com uso de marreta, o que é proibido pela Lei do Abate Humanitário. Também há funcionários que relatam “preferir trabalhar com machados”, outra prática vetada.
Nos diálogos filmados, um trabalhador chega a reconhecer que o abatedouro não segue as normas da Superintendência cearense do Meio Ambiente e que não tem uma câmara fria para o acondicionamento das carnes, o que já havia motivado uma interdição. Em conversa semelhante, um empregado de outro local conta que lá os animais mortos também não são resfriados e ficam pendurados por um dia inteiro até que sejam levados para os mercados.
“As denúncias que encaminhamos ao MPF são fundamentadas no entendimento de que as condições documentadas nos abatedouros em questão podem constituir sérias violações aos direitos dos animais e também podem causar danos graves à saúde das pessoas, tanto do público consumidor quanto dos trabalhadores” explica Paula Cardoso, vice-presidente jurídica da MFA no Brasil.
Em 2014, o MPF denunciou o então prefeito de Jardim do Seridó, Padre Jocimar Dantas de Araújo (MDB), por manter em funcionamento com condições irregulares o mesmo matadouro agora flagrado pela MFA. Autuado pelo Ibama, Araújo firmou na ocasião um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no qual se comprometia a adotar medidas como a lavagem de animais antes do abate, eliminar focos de urubus e implantar pré-tratamento dos efluentes líquidos. As práticas inadequadas, que persistem até hoje, voltaram a ser flagradas por uma vistoria três anos depois.
Touro em fuga
A prefeitura de Quixeramobim respondeu ao GLOBO que o matadouro municipal tem licença ambiental de operação, dentro de todos os padrões previstos, e que seus funcionários fazem o uso dos EPIs exigidos para a atividade. O prefeito de Caidó, Judas Tadeu Alves dos Santos (PSDB), afirmou que está ciente das necessidades estruturais do abatedouro e que muitas tentativas de resolução dos problemas têm sido realizadas, como um TAC firmado com o Ministério Público potiguar em 2021, mas negou parte dos apontamentos, como a ausência de pistola de insensibilização.
“Reafirmamos nosso comprometimento com a causa animal e sanitária” diz o prefeito, acrescentando que o município não tem recursos para construir um novo abatedouro e, por isso, vem adotando medidas paliativas para minimizar riscos.
Iago Silva de Oliveira Araújo, secretário municipal de Agricultura, Meio Ambiente e Pesca de Jardim do Seridó, não respondeu às denúncias decorrentes do trabalho da MFA e informou apenas que o município acaba de inaugurar um novo abatedouro público municipal, tendo sido firmado um TAC para manter o antigo em funcionamento até a conclusão da obra, o que não deve ser mais necessário em 15 dias. Segundo ele, o equipamento recém-aberto tem todo o maquinário destinado a cada etapa do abate, desossa e cortes. As prefeituras de Pentecoste e Pacoti não se posicionaram.
Procurado, o Ministério da Agricultura pontuou que existem matadouros municipais cujo funcionamento e fiscalização são realizados pelas próprias prefeituras. Ou seja, o mesmo ente opera e monitora a qualidade do trabalho, sem que o Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Dipoa) saiba sequer como se dá esse controle. Ainda assim, afirma a pasta, todos os abatedouros devem atender às exigências previstas pelas leis federais e respeitar as particularidades de cada espécie.
Já o MPF informou que as denúncias da MFA foram remetidas às Procuradorias do Rio Grande do Norte e do Ceará, onde passarão por análise preliminar para, depois, decidir-se pela abertura ou não de inquérito. “Não há prazo para esse trâmite”, concluiu o órgão. (via O Globo)