Num mundo dominado por homens, a mulher é tratada como um ser diferenciado, que merece uma designação especial. Enquanto a expressão “o homem” pode equivaler a “o ser humano”, como na frase “O homem é mortal”, a expressão “a mulher” só se refere aos seres humanos do gênero feminino. Ou seja, na mentalidade androcêntrica, o conceito de “homem” se confunde com o de “ser humano”, enquanto o de “mulher” não, e a primeira imagem de ser humano ou de qualquer outro animal que vem à cabeça é a de um espécime macho.
Desde as línguas mais antigas da grande família linguística indo-europeia, a mulher sempre recebeu uma denominação à parte, o que não aconteceria se ela fosse vista em pé de igualdade com os homens.
Na passagem do latim para as línguas latinas (ou românicas), o substantivo que designa o homem (homo) manteve-se, gerando versões dele nas diversas línguas: homme (francês), uomo (italiano), om (romeno), hombre (espanhol) etc. Já a designação da mulher se faz por substantivos de diversos étimos latinos nas diferentes línguas da família, isto é, não há para a mulher um termo pan-românico (que compreenda todas as línguas românicas): é femme em francês, donna em italiano, mujer em espanhol etc. O mesmo se dá nas línguas germânicas. O termo germânico para “homem” (mann) existe em todas as línguas da família (é Mann em alemão e em norueguês, mand em dinamarquês, man em inglês, sueco e holandês), mas essas línguas têm termos de origens diferentes para “mulher”: woman em inglês, Frau em alemão, kvinna em sueco etc.
Designar por meio de um substantivo feminino diferente do masculino a fêmea de uma espécie animal que tem importância na cultura de um determinado povo é um procedimento comum na maioria das línguas do mundo. Nas línguas românicas, por exemplo, têm-se pares de substantivos de raízes diferentes para nomear macho e fêmea de espécies culturalmente importantes. Assim, em português, temos boi/vaca, bode/cabra, carneiro/ovelha, cavalo/égua etc. Já as espécies em que a distinção entre machos e fêmeas não tem tanta importância se faz com substantivos de mesma raiz, com alteração apenas no final da palavra (gato/gata, cachorro/cachorra, javali/javalina etc.) ou nem se faz, como em cobra, girafa, tigre etc., nomes que designam tanto o macho quanto a fêmea. Em inglês, a palavra para mulher é woman, que, etimologicamente, significa “homem mulher”, ou seja, “homem do sexo feminino”.
A língua também aponta para um tratamento diferenciado dado à mulher na sociedade ao conter designações específicas para ela, inexistentes para o homem. A mulher de um chefe de governo é chamada de “primeira-dama”, mas o marido de uma mulher que desempenha aquele cargo não é chamado de “primeiro-cavalheiro”. Do mesmo modo, a mulher de um embaixador é uma “embaixatriz”, mas o marido de uma embaixadora não é um embaixador. Essas designações dão a falsa impressão de valorização da mulher, quando, na verdade, sugere a ideia de que ela é propriedade do homem.
Conta-se que Cecília Meireles recusava a designação de “poetisa”, por achar que esse termo não tinha a mesma conotação de “poeta” (usado para os homens), ao contrário, soava como minorativo, ou mesmo pejorativo. Por outro lado, Dilma Roussef exigia que a tratassem por “presidenta”, em vez de “presidente”, para enfatizar que quem ocupava o cargo de chefe da nação brasileira era, depois de mais de um século de domínio masculino, finalmente uma mulher.
Em ambos os casos, percebe-se o peso que o substantivo com marca de gênero feminino tem para a representação da mulher na sociedade. Se vivêssemos numa sociedade de igualdade de gêneros, distinções como essas não fariam parte de nossas discussões. Quem sabe um pouco de inglês já deve ter elegido essa língua como a mais livre do machismo, por não apresentar desinências de gênero em sua gramática. Enganou-se! E sobre isso falarei num próximo texto.
AUTOR: Jards Nobre é professor de língua portuguesa, escritor e doutor em Linguística.