A língua portuguesa é machista? O professor Jards Nobre responde!

A língua portuguesa é machista?

Como professor de português, principalmente ao dar aula de concordância nominal, uma das frases que mais ouço é: “A língua portuguesa é machista”.

A acusação sai com rancor da boca de quem estuda português a contragosto, seja para passar num concurso, seja para passar de ano na escola. A impressão que se tem é a de que as pessoas que dizem isso são contra o machismo, mas, no fim das contas, são apenas desgostosas com o fato de ter de saber regras de gramática. Se não houvesse flexão de gênero no português, o comportamento delas diante do dualismo homem x mulher na sociedade seria o mesmo: machista, a favor do macho (homem). Portanto, não é a língua que é machista, mas a sociedade que a usa.

Para o filósofo russo Voloshinov, a língua se estrutura a partir das necessidades comunicativas de uma comunidade, ou seja, é um fato social e está intimamente ligada ao ato comunicativo e às estruturas sociais. A língua, então, reflete o pensamento de um povo. Se um determinado povo elegeu o macho como superior à fêmea, esse povo é machista, e a língua falada por esse povo terá as marcas do machismo em sua estrutura.

Como muita gente sabe, o português é a continuação histórica do latim levado à Península Ibérica durante a expansão do Império Romano, e o latim, por sua vez, é a continuação histórica do protoindo-europeu, uma língua hipotética que teria sido falada na Europa por volta de 5.000 a. C. Assim, as origens do machismo em uma língua como o português remontam à estrutura da sociedade pré-histórica dos indo-europeus.

Numa sociedade em que o macho havia se colocado como superior à fêmea, talvez a partir da força física, a língua passou a refletir o modo como as fêmeas (e não falo só das mulheres) eram vistas por essa sociedade. A palavra para designar o ser humano passou a ser a mesma para designar o macho da espécie humana, pois o macho era predominante (não em número, certamente, mas em poder), enquanto a fêmea, vista como um ser diferenciado, recebia uma designação especial. Daí por que dizemos desde a Antiguidade frases como “O homem é mortal”, com a palavra homem designando todos os seres humanos, e não apenas os machos da espécie. Isso ocorre em todas as línguas indo-europeias, não apenas no português!

Além de usarmos o masculino com o seu valor específico (para designar o macho), usamos também essa forma para uma referência geral. O masculino é, portanto, geral, além de específico, enquanto o feminino é apenas específico. Frases como “O pior cego é aquele que não quer ver” e “À noite todos os gatos são pardos” trazem o masculino com referência geral (machos e fêmeas). Se a sociedade houvesse colocado a mulher como superior ao homem (como no filme Não sou um homem fácil), certamente diríamos “A pior cega é aquela que não quer ver” e “À noite todas as gatas são pardas”, com referência geral.

A predominância do masculino não se limitou ao nível lexical (do vocabulário), passou ao nível estrutural, sintático. Usamos o masculino mesmo quando não falamos de pessoas (“Estudar é BOM”, “Sopa é BOM em noites frias”, “É BOM que você venha!”).

Mesmo na língua inglesa, que não apresenta flexão de gênero, o masculino predomina. O primeiro astronauta a pisar na Lua teria dito “That’s one small step for a man, one giant leap for mankind.” Literalmente: “Este é um pequeno passo para UM HOMEM, um salto gigante para a humanidade.” Reparem que, em inglês, “humanidade” é mankind, palavra derivada de man, “homem”. Aliás, a palavra inglesa para mulher é woman, formada no inglês antigo a partir de wif (“mulher, fêmea do homem”) + man (“homem”). Man, assim como homem, é um substantivo usado tanto com referência geral (ser humano) quanto específica (homem, macho da espécie).

Conscientes das marcas do machismo na língua, alguns usuários de português hoje tentam driblar esse fato, colocando-se um “x” ― ou @ ou “e” ― no lugar da vogal “o” final dos nomes (substantivos, adjetivos etc.) quando a referência é geral: “Mininxs, estejam atentxs!” ― Porque o “o” também é a marca do masculino específico. A intenção é boa: acabar com o predomínio do masculino como forma geral e criar uma desinência com essa referência. Infelizmente, porém, esse recurso só funciona na escrita, sendo inaplicável na fala (Como pronunciar “meninxs”?), e também não elimina o masculino dos demais contextos em que ele predomina (como nos mencionados exemplos do sétimo parágrafo). Na fala, costuma-se recorrer ao uso do masculino e do feminino para driblar a predominância do masculino como termo geral (“Meninos e meninas, estejam…” ― Como devemos completar essa frase? “Meninos e meninas, estejam atentOs”? ou “Meninos e meninas, estejam atentos e atentas”, ou devemos dizer “Meninos estejam atentos e meninas estejam atentas”? ― Fica a questão). Esse recurso, porém, vai contra o princípio da economia linguística (a tendência a usar menos formas para se comunicar), e não funciona bem em muitas frases. Imaginem como ficaria “O pior cego é aquele que não quer ver”: “O pior cego e a pior cega é aquele e aquela que não querem ver” ou “O pior cego é aquele que não quer ver, e a pior cega é aquela que não quer ver”… Arghh!

Talvez o melhor caminho seja modificar os termos consagrados na gramática. Em vez de dizermos que as palavras têm gênero “masculino” e “feminino”, por que não dizermos que elas têm “tema em O” e “tema em A”? Isso, entretanto, não eliminará o machismo da sociedade, pois, como disse no início do texto, a coisa não está na língua, está nos usuários dela.

AUTOR: Jards Nobre. Professor, escritor e doutor em Linguística.


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